“DEPOIS DE TANTAS «GUERRAS», DE GRANDES «LUTAS», ESTOU A VIVER UMA ERA DE PAZ”
Para o Pároco das paróquias do centro da cidade de Amarante, o mais dicifil de superar na sua vida de sacerdote é a aceitação humilde de que os outros não possam entender tudo na sua opção pessoal.
Na polémica questão dos crucifixos nas escolas, Amaro Gonçalo refere que não faz sentido retira-los, como não faz sentido colocar onde eles não existem.
Concorda com a proibição da admissão ao sacerdócio de homossexuais.
Este Pároco teve uma grande intervenção nas últimas eleições autárquicas “porque estavam em jogo prespectivas éticas".
José Manuel Monteiro: Quando percebeu que tinha a vocação sacerdotal?
Amaro Gonçalo: Em boa verdade, foram outros que o perceberam primeiro. Amigos da Escola e pessoas da Paróquia iam dizendo “tu devias ser padre”, “tu davas um bom padre». Durante muito tempo, relativizei esses pareceres, por julgar que era excesso, de quem não entendia bem a identidade e a missão dos leigos na Igreja e no Mundo. Achava que as pessoas me colavam ao «ser padre» pelo facto de me verem posicionado e comprometido com a Igreja. Eu até aos dezassete anos não pus a questão de ser padre. Recordo apenas que entre o 8º e o 9º ano tive uma vontade “passageira” de ir para o Seminário. A minha mãe, sabiamente, disse-me que tivesse juízo, que estudasse e que logo se veria… Quando fui para o Magistério, a fim de ser, no futuro, professor “primário”, a questão agudizou-se na minha consciência: Seria possível que todos estivessem enganados a respeito da minha vocação e só eu tivesse razão? Passei então da escuta da voz do Povo a perscrutar a voz de Deus, a voz da consciência, a voz do coração. Senti uma inquietação muito grande. Procurei ajuda num director espiritual. Ouvi o discernimento da Igreja, do pároco, do Bispo no dia do meu Crisma, e tudo me conduzia para a confirmação de um sinal que estava gravado dentro e fora de mim. Devia ser Padre. Entrei no Seminário, depois de um ano de “pré-seminário”, com dezoito anos. Era um jovem. Entendi que o Seminário era o melhor espaço para o confronto e para a descoberta e formação vocacionais.
JMM: O que leva os jovens do séc. XXI a ingressar num seminário, sabendo que têm de abdicar de muitas coisas que são próprias da juventude?
AG: A questão, para quem quer ser padre, não começa pelo que tem de abdicar. Há uma anterior sedução por Cristo, pelo seu evangelho, pela qual se está disposto a «deixar tudo», ou como diz a parábola, pela qual se é capaz de vender tudo, para comprar a pérola preciosa, que mais ninguém aprecia ou descobre. Esta sedução e este encantamento por Cristo, hão-de galvanizar todo o ser – espírito, alma e corpo! Depois o resto é como em tudo... Não se pode ter tudo. Uma opção «por» implica renúncia «a». Mas a renúncia ganha sentido perante o fascínio daquele por quem se optou. A vocação sacerdotal é um seguimento radical. E essa “radicalidade” tão própria da cultura juvenil, pode também ter significado, orientada para uma opção de vida sacerdotal.
JMM: Alguma vez pensou que o sacerdócio não foi a opção certa na sua vida?
AG: Sim. Em alguns momentos, mais dramáticos, de debate interior e de iminência de cisão do coração, senti-o. Mas rapidamente, múltiplos sinais, vindos do exterior, confirmavam a voz íntima do amor, que me reconduziu sempre ao centro da minha vocação sacerdotal. Não me entendo a não ser como Padre. Isso é uma marca indelével da minha identidade pessoal. Estou certo de que um desvio, me traria uma amargura irreparável.
JMM: Qual é a parte mais difícil de superar na vida de um Padre?
AG: O que é mais difícil, para mim, é a aceitação humilde de que os outros não possam entender tudo da minha opção pessoal. Difícil é ainda situar as comunidades e as pessoas em perspectivas verdadeiramente evangélicas, quer na vida pessoal quer na vida das comunidades. Muitas vezes sentimo-nos sós. Temos a certeza de que só Deus avalia o que sentimentos e queremos. Ninguém mais nos poderá entender.
Depois, há um desajustamento muito grande entre o que queremos ser e dar aos outros… e aquilo que os outros querem que sejamos e esperam de nós. O Padre é o homem que pode oferecer o testemunho da fé, da presença de Deus, dos seus dons mais excelentes e eternos. Mas muitas vezes fazem dele um funcionário religioso superior. Há um desencontro de perspectivas e de expectativas, entre o povo e o padre, que é fonte de inquietação e de solidão, de luta e de combate espiritual.
JMM: Ser Padre de uma paróquia na província não é a mesma coisa que ser Padre numa grande cidade. Os boatos e as insinuações são o que custa mais a ultrapassar nas paróquias mais rurais?
AG: “Ai de vós, se todos disserem bem de vós”, é um aviso de Jesus, no Sermão da Montanha, contra os falsos profetas. Os boatos e insinuações não são exclusivos do meio rural. Também acontecem nas cidades, onde o núcleo eclesial é pequeno e muitas vezes «fechado». É importante que as pessoas percebam que o falar mal do padre, com razão ou sem ela, não é um serviço à pastoral vocacional. É uma forma de desacreditar o ministério. Este ministério é riquíssimo e fundamental para a vida da Igreja. Mas é um ministério contido em «vasos de barro», nos limites da nossa fragilidade humana. Seria bom que as críticas dos fiéis fossem sempre, face a face, no sentido da correcção fraterna mas também da consolação. Deste modo, poderiam ajudar o Padre a reencontrar-se com o centro do seu ministério, se porventura se desviar daí mesmo.
JMM: Em muitas homilias suas, nota-se um certo cansaço e desilusão com o povo amarantino.
AG: Não é verdade. Às vezes, espicaço a assembleia, no sentido de urgir uma resposta, de provocar uma reacção, numa espécie de «pedrada no charco». Mas presentemente sinto-me muito bem entre os meus paroquianos. Eles têm-me dado grandes sinais e testemunhos de admiração, de respeito, de acolhimento favorável às propostas da comunidade. Se quer que lhe seja franco, sinto-me «em alta», sinto-me bem. Depois de tantas «guerras», de grandes «lutas», estou a viver uma era de paz, daquela Paz que é construída pela graça de Deus, acolhida no coração, construída pelas nossas mãos e é síntese de todos os bens. Tenho a certeza de que não seria mais feliz se estivesse noutro lugar. Procuro ser feliz, no lugar onde estou, para onde fui chamado.
JMM: Gostava de ir para outra paróquia?
AG: O Padre é colaborador no mistério apostólico do Bispo. Está onde o Bispo entende que ele possa ser mais útil e necessário. O Padre diocesano não é propriedade de nenhuma paróquia. Está ao serviço de toda uma diocese. Deve estar, onde é enviado. Esse «gostar de ir para outra paróquia» é praticamente uma preferência que não deve ter lugar no coração do Padre. O gosto dele, deve ser o de estar para onde for chamado.
Todavia, devo dizer-lhe que regra geral (há excepções), não foi positiva, nem para o padre nem para a paróquia, a permanência de um padre anos a fio, no mesmo lugar. A mudança de paróquia ou de serviço na Diocese enriquece o Padre, abre-lhe perspectivas novas. E pode ser útil à renovação das Paróquias donde parte ou aonde chega. Outras vezes, o próprio pode sentir como que esgotado o projecto ou ter já pouco a dar onde está; pior ainda, pode chegar a um grau de incompatibilidade ou de incapacidade de mudança, que então o melhor é manifestar junto do Bispo as suas inquietações e pôr a hipótese de sair. De qualquer modo, a mudança, deve ser decidida pelo Bispo, pois ninguém é bom juiz em causa própria. Ser padre é que é importante. Onde for preciso, é que é decisivo! Lembro Santa Teresinha que, a respeito das suas dúvidas e desejos, dizia: «a melhor maneira de não errar, é obedecer». Quanto a mim, neste momento, a minha posição é a de sempre, quanto a uma eventual transferência: obediência à vontade da Igreja expressa pelo Bispo. Custe o que custar!
JMM: Foi um Padre muito interventivo nestas últimas eleições autárquicas. Porquê?
AG: Porque estavam em jogo perspectivas éticas. A minha intervenção foi no sentido de alicerçar as bases éticas do pensamento e da decisão política, aliás sempre inspiradas em orientações do Magistério da Igreja. Não é admissível no discurso popular, menos ainda, na boca de cristãos, expressões como esta: «rouba mas faz», «se lhe dão o dinheiro, não tem por que se preocupar donde vem». Mesmo que isso não fosse verdade, a respeito de nenhum candidato, não era aceitável tal discurso. Não podemos declinar perante semelhante deriva ética. O Padre exerce a função de sentinela sobre o seu povo. Havia uma «jogo de sedução» que parecia «alienar» a consciência e hipotecar a liberdade democrática. Era preciso despertar a consciência pessoal e social para valores, para a razão última das coisas. Foi essa a pedagogia da minha intervenção, em sucessivas homilias. Não estou arrependido, nem um bocadinho!
JMM: Que relação existe entre a Câmara Municipal de Amarante e a Paróquia?
AG: É uma relação de respeito e de leal colaboração. Todo o poder eleito e instituído nos merece respeito. A Câmara tem percebido bem e cada vez melhor o nosso papel e está disposta a ir até onde pode, numa colaboração estreita, sobretudo no campo da cultura. Somos bons vizinhos. Graças a Deus.
JMM: Considera que há promiscuidade entre a política e a Igreja?
AG: Sinceramente, acho que não. Leiam-se os documentos emanados da Santa Sé, ou da Conferência Episcopal Portuguesa ou dos nossos Bispos em particular, sobre os mais variados temas. É clara a função da Igreja, como instância crítica da sociedade, da política e da cultura. Quanto a casos pontuais, «paroquiais»… têm a dimensão que têm. Era bom que não acontecessem. Mas ainda não estamos no céu!
JMM: Faz sentido que num Estado laico ainda existam crucifixos nas escolas?
AG: Faz sentido não os tirar donde estão. E faz sentido não os colocar onde não estão.
Não os tirar onde estão, porque são sinais de uma cultura, de um tempo, de uma mundividência, que não podemos descartar, sob pena de traição cultural. Nessa lógica de retirada, seria preciso, por exemplo, dar aulas no dia de Natal ou laicizar os nomes santos de ruas, freguesias… Negar a história, perder a memória, não é bom caminho para o futuro. Os Crucifixos estavam lá, como estão as Igrejas no meio da cidade, os presépios nas lojas, etc. Não é uma imposição de fé para ninguém. É um vestígio cultural, que nos situa onde estamos. Não estamos na China nem no Irão.
Por outro lado, não poria os crucifixos, onde não estão. São escolas de outro tempo, construídas dentro de um outro universo cultural, que já não é o de «cristandade».
A este respeito, como em muitas coisas, confunde-se muito a laicidade do Estado. O Estado é laico, mas a sociedade é plural! Esta pluralidade não funciona por eliminação, mas por inclusão dos sinais culturais.
JMM: O Bispo do Porto, D. Armindo Lopes Coelho, está prestes a terminar as suas funções à frente da diocese. Que balanço faz do trabalho por ele desenvolvido?
AG: Não me atrevo a avaliar o Bispo. É o Bispo que tem de me avaliar a mim. Mas para que não induza da resposta, qualquer apreciação negativa a respeito de Dom Armindo, posso dizer-lhe isto: Fez o que pôde. E certamente fez o melhor que soube. Vê-se que o fez, com enorme espírito de sacrifício e de entrega, com prejuízo de saúde até. Não me cabe qualificar o trabalho do Bispo, que numa Diocese como a nossa, é imenso e é colegial, depende dele e de nós. Depois, os frutos do trabalho, em Igreja, são sempre mais apreciáveis, “fora da época”, muito tempo depois da sementeira. Estamos gratos a Deus, pelo inegável esforço de renovação e de reestruturação que o Bispo tentou levar a cabo na Diocese, a sua preocupação pela vida dos padres, num tempo tão difícil, com tantos padres de idade avançada e muitos a morrer . O crescimento da Igreja não depende exclusivamente do Bispo. A Cabeça não é todo o Corpo. E nem sempre o Corpo obedece à Cabeça…
JMM: Quem gostaria de ver como próximo Bispo na diocese do Porto?
AG: Não vejo «pessoas», mas aprecio «perfis». Terá de ser um Bispo, de grande coragem e de grande humanidade. Muito próximo de Deus e muito próximo de nós. E que comece pela proximidade com os padres, seus amigos de eleição, os primeiros chamados a «estar com Ele». Dou graças a Deus, muitas graças a Deus, por não ter o ónus da escolha do Bispo. Posso dormir descansado! Serei sempre Padre com o Bispo, seja ele quem for.
JMM: Com o novo Papa Bento XVI a Igreja será ainda mais conservadora na sua Doutrina?
AG: “Ainda mais conservadora” supõe, da sua parte, que já o é. Não concordo. A Igreja deve obediência ao Evangelho, ao Espírito Santo. Não deve obediência à moda, ao espírito do mundo, à vontade popular. Quem sabe ler as orientações do Magistério da Igreja, apercebe-se de uma visão humanista de grande alcance, de enorme exigência, de grande transcendência, para a vida pessoal, social, cultural, de modo a formar o Homem até à medida de Cristo na sua plenitude. Condescender à facilidade, é «descer», decair para o grau zero da dignidade humana. É por aí que andam tantas das propostas que nos pregam os midia. A Igreja deve marcar a diferença. Sem o excesso dessa diferença, deixa de ser sinal.
Quanto a Bento XVI, é inegavelmente um homem de fé e de cultura superiores. Brilha nele uma visão de Deus, da Igreja e do Mundo, que nos impressiona pela sua acutilância, pela sua frescura, pela sua originalidade. Até agora, não vi sinais alguns de «retrocesso». Pelo contrário, receber Hans Kung, por exemplo, é um sinal de enorme abertura!
JMM: Faz sentido a proibição da Igreja no que se refere à admissão dos jovens que pretendam seguir o sacerdócio e que tenham mantido relações homossexuais há menos de 3 anos?
AG: Faz todo o sentido. A questão pôs-se porque alguns teólogos e pastores eram de opinião que a homossexualidade enquanto «condição», não configurava, em (por) si mesma, um impedimento para ser padre, se obviamente fosse respeitado o celibato, tal como o é em relação à heteressexualidade. A Igreja veio dizer que não. Nem a prática (isso já era pressuposto) nem a «condição», são conciliáveis com o exercício do ministério sacerdotal, desde que essa condição se revele «permanente».
O documento da Santa Sé dissipa assim as nossas dúvidas. E deixa claro, que, é incomportável a condição homossexual, entre as qualidades humanas exigíveis ao candidato ao sacerdócio,
E olhe: mesmo que se possa discutir isso, se a homossexualidade configura ou não um deficit afectivo, um handicap ao nível da qualidade humana, se a homossexualidade é ou não, à priori, uma condição limitadora da afirmação da plenitude da afectividade, etc… há uma coisa que me parece indiscutível: A Igreja tem todo o direito de enunciar um conjunto de qualidades humanas e de fé, exigíveis a quem se propõe ao ministério sacerdotal. A Igreja vem dizer-nos que a homossexualidade configura uma situação psicológica, afectiva, que põe em causa aquele equilíbrio humano, que se pede e se exige, a quem tem de ser Padre. Está em todo o seu direito. Da minha parte, concordo absolutamente.
Limitação de direitos humanos? Dirão alguns! Tenham dó. A vocação sacerdotal não é um direito individual. É um dom pessoal, que alguém recebe, mas que há-de ser discernido e reconhecido, acolhido e aceite, pela Igreja, que é sempre quem chama e para quem se é chamado!
JMM: O que lhe falta ainda realizar como sacerdote?
AG: Não estou à espera de amanhã, para ser feliz. Sou feliz agora. E sinto-me realizado, por ser fiel hoje à verdade daquilo que Deus pensou, desde sempre, para mim. A minha liberdade, é obediência à verdade! O que mais queria era ser Padre. A Igreja achou que sim, que Deus também o queria. E eu sou-o de facto, pela graça de Deus. Depois disto, trata-se de viver cada dia, segundo as exigências de cada tempo. Só Deus sabe o que me falta! Mas a quem Deus tem já nada lhe falta, disse Teresa de Ávila.
JMM: E como Homem?
AG: Não gosto deste maniqueísmo «como padre» e «como homem». É o mesmo que perguntar a alguém se é realizado «como pessoa» e se o é «como pai»?! Não suporto a frase: «é padre dentro da Igreja; e fora dela é como os outros». Quero dizer a todos: também sou Homem dentro da Igreja, e não deixo nunca de ser padre lá fora. Até quando estou a dormir!